sexta-feira, 13 de junho de 2014

Gracias a la Divinidad



Nikos Kazantzakis relata em sua autobiografia, Testamento para El Greco, uma intuição de adolescente, que lhe seria confirmada alguns anos depois. Em visita a Giouhtas, em Creta, sua terra natal, Kazantzakis e seus amigos recordam-se de que, segundo a crença popular, é ao pé dessa montanha sagrada que se encontra enterrado “o pai dos deuses e dos homens, Zeus”. Os jovens surpreendem-se ao constatar que também um deus poderia estar sujeito à morte. Com palavras que não sabe bem explicar, o futuro escritor soluciona o paradoxo: “os deuses morrem, mas a divindade é imortal”.
Já como estudante de Direito da Universidade de Atenas, o protagonista realiza uma viagem a Creta e se dirige ao Palácio de Cnossos, que se mostrava novamente ao mundo justamente naqueles primeiros anos do séc. XX. A caminho do Palácio, encontra-se com um famoso intelectual francês, o abade Mugnier, responsável pela conversão ao catolicismo de uma série de escritores ateus, judeus e protestantes. O abade solicita sua orientação e companhia, pois só conhece o grego antigo.
Durante a visita ao sítio arqueológico, ambos se deparam com a inscrição, numa coluna, de um machado duplo, símbolo religioso da civilização minuana. Espantado, Kazantzakis percebe que o religioso se coloca em postura de prece diante desse símbolo “pagão”. Questionado, o abade confessa que, realmente, a inscrição o levou a rezar. A justificativa é arrojada para um líder católico do início do século passado: “Cada época dá a Deus uma máscara própria, mas por detrás de todas as máscaras, em todas as épocas e em todas as raças encontra-se sempre o mesmo Deus. Nós temos a cruz como emblema sagrado, teus antepassados mais antigos tinham o machado duplo; mas por detrás da cruz e do machado duplo eu vejo e adoro, prescindindo dos símbolos efêmeros, o próprio Deus”.
Esta mesma compreensão se manifesta quando ambos, após o passeio pelo Palácio de Cnossos, ingressam numa casa habitada pela ordem religiosa dos dervixes. Um velho místico muçulmano com quem conversam lhes explica que a união com Deus se realiza preferencialmente pela dança, capaz de dissolver o “eu”. De imediato, o abade recorda-se de São Francisco de Assis, que, dançando, “passa pela terra e sobe ao céu”, concluindo, assim, que em toda a fé genuína há de se revelar “sempre, sempre o mesmo Deus”.
O jovem Kazantzakis então ousa perguntar como se explica, sob esse ponto de vista, a proposta dos missionários cristãos, que percorrem “os quatro cantos do mundo e querem obrigar os nativos a abandonar a máscara que deram a Deus, substituindo-a pela nossa, que lhes é estranha”. A complexidade da pergunta impede que o abade a responda imediatamente.
Apesar de relevante, este ponto não é o mais fundamental para a nossa reflexão. O autor não relaciona, de maneira explícita, a visão de mundo inter-religiosa do abade Mugnier à intuição expressa em sua adolescência. No entanto, percebe-se que estes episódios se encontram intimamente entrelaçados. A divindade que não morre é justamente aquela que prescinde dos “símbolos efêmeros”, nacionais, culturais, contingentes, divindade subjacente às múltiplas máscaras divinas.
Ao distinguir o “Deus” da “divindade”, lembro-me de minha amiga chilena, Silvia Selowsky, estudiosa das deusas femininas. Silvia costuma dizer, em lugar de “Gracias a Dios”, “Gracias a la Divinidad”. À primeira vista, poderia parecer que a preferência por essa terminologia resulta do seu desejo de ressaltar o lado feminino do divino. No entanto, numa de nossas conversas, Silvia revelou-me que, para ela, o termo mais adequado para expressar a Deus seria “lo Inefable”. Esta fala me fez lembrar do autor que fundamentou minha tese, Vladimir Jankélévitch, especialmente atento às fecundas modalidades do inexprimível. O inefável, adjetivo-substantivado, possui algo em comum com a divindade que não morre, à qual Silvia costuma agradecer. Ele remete à realidade que não pode se “aprisionar” num nome, como ensina o mesmo velho dervixe, que está para além e “por detrás” de toda a imagem e símbolo. Em espanhol, este aspecto ainda fica mais claro, pois o inefável não é masculino, o que restringe suas (paradoxais) possibilidades de representação. É neutro, ou seja, acentua o caráter abstrato do inominável, do indefinível.
Ao lembrar-me de Silvia e de Jankélévitch, aluno de Bergson, assim como Kazantzakis, sem querer amplio a hipótese do abade e acredito confirmar a intuição do jovem escritor. Sob o machado duplo, a interjeição divina do dervixe, as deusas do oráculo de Silvia, as experiências irredutíveis ao logos, repousa o Inefável. Até mesmo para o filósofo ateu, este nunca há de morrer, pois não pode se converter no meramente exprimível, na palavra ou na imagem única que esgota a essencial inefabilidade.